Sonia Theodoro da Silva
Todos conhecem a história da famosa cidade situada às margens do Mediterrâneo. O poeta e historiador Homero que teria vivido por volta do século IX a.C., e a quem se atribui a elaboração da Ilíada e da Odisséia relata a tragédia dos troianos no primeiro poema e, no segundo, a saga de Odisseu ou Ulisses, em seu retorno a Ítaca após os combates junto aos exércitos de Agamenon e Menelau. Tróia, cuja cidade fortificada entre muros sólidos impedia o assédio de povos bárbaros, invejosos de seus tesouros intelectuais e sociais, de sua influência política, de sua riqueza material, mas, sobretudo, de sua localização estratégica, pois era rota de navegação para outros portos comerciais, jamais poderia ser invadida, assim acreditavam os seus habitantes.
Porém, ninguém poderia imaginar que a famosa cidade-fortaleza seria vencida pelas frágeis asas de Eros, que envolvendo o coração e o raciocínio de Páris, irmão de Heitor, líder dos exércitos troianos, trouxe, juntamente com a beleza e a graça de Helena, esposa de Menelau, os motivos superficiais para o cerco dos gregos e de seus aliados. Após 10 anos, Tróia capitula, não pela força exaurida de seus exércitos, não pela morte afrontosa de Heitor pelas mãos e pelo ódio de Aquiles, ou pela magnífica estratégia militar dos gregos.
Tróia foi vencida pelo orgulho de achar-se inexpugnável. Tróia foi vencida pela falsa crença de que jamais poderia ser conquistada, já que contava com a simpatia e a ajuda perene e constante dos deuses. Já não mais poderia receber o aconselhamento de seus generais, que se destacavam pela enorme prudência em preservar os seus muros contra o assédio inimigo, pois estes jaziam mortos pela fúria avassaladora do conquistador. Tróia foi vencida pela invigilância. Tróia foi vencida pela ingenuidade de seus líderes, que acreditaram que o inimigo poderia presentear-lhes, após terem praticamente dizimado as suas forças, com um belo e imenso cavalo feito de madeira colhida às pressas de destroços de guerra (como um presente poderia ser proveniente de despojos oriundos do ódio, da morte, da violência?).
Tróia, na verdade, foi vencida pela astúcia.
Tróia e seus guerreiros, a Grécia com seus heróis inspiraram as civilizações que se seguiram, principalmente Roma, cujos Césares atribuíam-se a descendência de Enéas, soldado troiano, portador da espada de Heitor após a morte deste, e que salva um punhado de mulheres e crianças da cidade incendiada; Alexandre Magno inspirava-se em Aquiles, e Juliano, que a equivocada Igreja nascente do século IV d.C. legou à posteridade como Apóstata, atribuía-se a reencarnação de Alexandre, herdeiro do herói grego.
A tragédia marcou o inconsciente coletivo humano e ajudou a formar os arquétipos coletivos do guerreiro, do mártir, do herói. E até hoje servem como metáforas, modelos, embora deturpados pela pós-modernidade, pelos pseudo-heróis das guerras fratricidas que inundam a nossa humanidade de morte e de horror, estejam elas situadas em países distantes ou nas ruas das grandes cidades, no trânsito, nas mortes sem razão de ser.
Tróia realmente existiu? Ou trata-se apenas de uma lenda construída em bases mitológicas por um grego, amante de sua cultura e que, sensibilizado pela tragédia do inimigo, desejava perpetuá-la no poema, legando a sua imagem à posteridade? Na região mesma onde Homero a situa, atualmente província da Turquia, foram descobertos vestígios de oito cidades que ocuparam aqueles sítios escavados por arqueólogos, e sobrepostas umas sobre as outras, e cujos restos de materiais queimados em uma delas (Troia VII) comprovam-lhe a destruição pelas chamas de um grande incêndio. Se existiu ou não, verdade é que Tróia e o seu fatídico “presente” grego jazem em nosso inconsciente individual e coletivo, formando atos, atitudes e ações congêneres.
E a verdade? Conceitualmente, ela é o motivo pelo qual existimos, a força que nos impulsiona sempre para frente, apesar de tudo. A Verdade fez Sócrates buscar na intimidade intelectual de seus interlocutores os conceitos de justiça, de amor (leia-se “Apologia a Sócrates”, de Platão), e cujas argumentações o seu maior discípulo, Platão, em seus Diálogos, coloca nos lábios do grande mestre. Sócrates incomodou o poder ateniense vigente, pois remetia as pessoas ao conhecimento a partir delas próprias, de suas consciências. E foi condenado à morte pela mediocridade.
A Verdade tem feito vítimas ao longo do tempo. Jesus de Nazaré trouxe-a vestida de perdão, de amor ao próximo, de respeito e amor a Deus, sobretudo, de vida após a morte. E indicou os caminhos para chegar a ela, oferecendo-se em holocausto, jamais utilizando-se de subterfúgios para que ela sobrevivesse à hipocrisia de fariseus e violência de romanos. Simplesmente viveu-a em espírito, em atos, já que Ele, Espírito imortal e pleno, é o seu mais ilustre Portador.
Allan Kardec, discípulo de Jesus, reencarnado no século do Positivismo comteano, é convidado a elaborar a síntese do Conhecimento. E, sob o ditado e orientações dos mais eminentes e nobres Espíritos das dimensões superiores em moral, intelectualidade e amor à Humanidade, ante o desvelo do Espírito da Verdade, passa a escrever a mais nova aliança de Deus para com os homens perdidos em descaminhos intelectuais, sociais, políticos, religiosos, filosóficos.
E o Espiritismo, de forma simples, porém com conotações educativas, abole de vez o misticismo das religiões, o mito messiânico e idólatra que envolve Jesus de Nazaré, a arrogância da intelectualidade vazia, do mediunismo místico e ignorante das relações intra-mundos, da prepotência dos pretensos conhecedores daquilo mesmo que desconhecem: a Verdade.
A criação do Centro Espírita foi inspirada por Allan Kardec, subsidiada pelos Espíritos Superiores, e ainda é e será sempre o grande e insubstituível zelador do Espiritismo em seu formato de divulgação através de palestras educativas e consoladoras, pelo atendimento fraterno que dispensa às dores e angústias humanas, bem como através de seus cursos focados na Doutrina Espírita e suas corretas abordagens, que não ensinam, mas que despertam o Espírito humano para os seus grandes deveres para consigo mesmo e para com o seu semelhante, tal como a maiêutica socrática, em bases de Educação do e para o Espírito.
O bom Centro Espírita jamais será superado por quaisquer movimentos humanos que visem a sua substituição perante a sociedade e o grande público.
A intelectualidade a princípio deveria nele buscar a sua inspiração para preencher o vazio imenso que a Filosofia contemporânea e meramente acadêmica impingiu aos seus adeptos pelo mundo, pois raramente coloca-se como partícipe da nobre história do pensamento humano em seus esforços pela busca da Verdade em Espírito, tal como a Filosofia Espírita preconiza, revela e se situa.
A Ciência em seus desdobramentos deveria buscar no bom Centro Espírita, e no Espiritismo, a inspiração para as nobres ações e para as suas investigações com base nos arquivos inconscientes do Espírito.
As Religiões teriam no Espiritismo, conforme Kardec, o mais poderoso auxiliar para o desenvolvimento da espiritualidade humana.
Contudo, o que temos observado, é uma “invasão desorganizada” de Cavalos de Tróia entrando, à semelhança da tragédia de Homero, pelas portas adentro do Centro Espírita. Travestidos com suas roupagens aparentemente belas, contudo, trazendo consigo ora a inconsistência de seus argumentos, porque pseudo-verdadeiros, ora a natureza mórbida e destrutiva que os distinguem, portam, em sua bagagem, conceitos equivocados provenientes de grupos de auto-ajuda, do africanismo brasileiro, de evangelismos e de sua contra-partida, o materialismo, ausente do real Evangelho de Jesus, de opiniões do senso comum de que o Centro Espírita é “uma empresa”, de mensagens de pseudo-sabedoria em total e absoluta discordância com os nobres princípios que norteiam o Espiritismo como força de transformação, aquela que faz com que vejamos o mundo com outros olhos. Trazem ainda a ausência de entendimento fraterno – o verdadeiro, porque são superficiais e temporais.
Cada agrupamento desses manifesta a bagagem intelecto-moral de seus iniciadores e cultivadores, desprovidos, portanto, da organização estrutural de um movimento real, palpável e necessário como outros que mudaram a História do ser humano para o seu real benefício, porque traziam consigo a reestruturação, a construção em bases morais e filosóficas consistentes. O Espiritismo surge como um destes – porém, como não faz parte da temporalidade mas da eternidade e da imortalidade, ele deixa de ser um movimento para, numa segunda fase, adentrar as consciências humanas num processo regenerador e de despertamento das virtudes latentes em cada ser, portador das Leis Morais, divinas, porque cósmicas, universais, leis estas que precisam vir à tona, num novo movimento, desta vez confraterno, para com outro ser, cósmico e imortal como ele mesmo.
O Espiritismo já fez uma análise desses grupos, ausentes de logicidade e legitimidade, que surgem, vez por outra, no planeta de provas, como ondas de um mar tempestuoso, a jogar com as vidas em sua superfície; outros, a princípio são precedidos de uma calmaria silenciosa, expectante e agradável, contudo, explodem como tsunamis que arrastam consigo esperanças, realizações, trabalhos…
Se, a semelhança de Príamo, acreditarmos que somente aos bons Espíritos cabe a prudência no zelo ao Centro Espírita, se acreditarmos, arrogantemente, nas “paredes inexpugnáveis” do Centro Espírita, se abrirmos mão do estudo genuinamente espírita e metodicamente cultivado, se acreditarmos que é “caridoso” e “democrático” abrir as portas para que todos falem de tudo, sem método, sem bases de seguro desenvolvimento com base no Espiritismo, como filosofia do Espírito e ciência do Espírito que é, e apenas com base na democracia popularesca, ou aos modismos midiáticos, se aderirmos à ingenuidade orgulhosa troiana e nos influenciarmos pelos equívocos da bela aparência, sem, enfim, acreditarmos fundamente de que o Espiritismo ainda é e será sempre a renovada Mensagem de Jesus aos corações e ao raciocínio humanos, seremos como os descuidados habitantes de Tróia.
As portas de centenas, senão milhares de Centros Espíritas pelo Brasil afora já foram escancaradas à imprudência. Cavalos de Tróia lá estão instalados e promovendo o seu declínio e obstaculando-lhe o crescimento em bases legítimas. E tal como a infeliz cidade-fortaleza, fadados ao desaparecimento. Tal como as lendas que habitam o nosso inconsciente e que nos trazem, vez por outra, sentimentos de nostálgico vazio.
Seremos castigados pelo futuro? No passado, o Cristianismo de Jesus foi invadido por manadas incontáveis de Cavalos de Tróia, que lhe desestruturaram os princípios belos e verdadeiros. E porque verdadeiros, voltaram após 1532 anos, contados a partir do primeiro Concílio de Nicéia.
O castigo jaz, igualmente latente, na consciência humana: é o sentimento de derrota ante proposta tão sublime quanto é o Espiritismo para a renovação do Espírito. O “castigo” resume-se em voltar e voltar sobre os próprios pés, retardando a própria evolução, através das reencarnações sucessivas tantas vezes quantas necessárias forem para colocar-se novamente e novamente a mensagem de Jesus nos próprios e nos demais corações humanos carentes de fé raciocinada e de conhecimento da Verdade que os enganos e as perfídias ajudaram a deslustrar, e a corrigir o estrago intelecto-moral ocorrido nas mentes de centenas de milhares de “seguidores”, arcando-lhe as gravíssimas consequências, num correto e justo “a cada um segundo as suas obras.” É desta forma que a falência de princípios recomporá caminhos. Tal como ocorreu com a mensagem de Jesus, obstaculada, enegrecida e deturpada ao longo de toda a Idade Medieval, contudo renascida pelo responsável e inegável bom-senso de um único missionário, a serviço da causa do Bem sob os auspícios de centenas de Espíritos ante a coordenação firme e infinitamente misericordiosa de Jesus.
Bibliografia:
Codificação Espírita, Allan Kardec e os Espíritos do Bem representados por Jesus de Nazaré, o Espírito da Verdade (enfoque cap. XXI – Falsos cristos e falsos profetas, de O Evangelho Segundo o Espiritismo).
Instruções de Allan Kardec ao Movimento Espírita – Allan Kardec.
Curso Dinâmico de Espiritismo (J.Herculano Pires), cap. XX – Como combater o Espiritismo – (ao ilustre prof. Herculano tributo o meu mais profundo respeito pela defesa da Verdade espírita; é dele o conceito de cavalo de Tróia desenvolvido neste artigo);
O Centro Espírita, J.Herculano Pires.
Sol nas Almas (Espírito André Luiz)- Cap. 29 –Defesa da Verdade.