Sonia Theodoro da Silva
Allan Kardec notabilizou-se como o Codificador do Espiritismo.
Muito mais do que isso, o prof. Rivail dedicou-se de corpo e alma a compreender a finalidade da maior revelação em tempos contemporâneos já trazidas ao homem para o seu aprimoramento intelecto-moral a caminho da Regeneração.
Mas muitos desconhecem que Allan Kardec também foi divulgador da Filosofia de Luz, da Filosofia dos Espíritos Superiores.
É curioso notar como a divulgação doutrinária alcançou os corações compromissados com a Causa espírita, no século XIX. Estamos habituados a ver, em Kardec, o missionário que conseguiu realizar um trabalho de grande envergadura, em tempo record, e com o máximo critério metodológico que o conduziu à excelência de uma obra, que já trazia em si o selo do Espírito da Verdade.
No entanto, há, também, no Codificador, a veia do tribuno – e mais – do Mestre aconselhador, benevolente, criterioso, pois à época, tais qualidades e recursos eram de premente necessidade para que o trabalho se concretizasse, embasado na seriedade e na fidelidade aos ensinos dos Espíritos Superiores.
No outono de 1860, parte Kardec de Paris, em direção a Lyon. Já concluíra O Livro dos Espíritos, três anos antes, e o opúsculo O que é o Espiritismo, em 1859, e trabalhava com afinco, na elaboração da Revista Espírita. Contudo, sabia que o maior trabalho ainda estava por vir. Por isso, limitaria as suas disposições a seis viagens apenas. Não podia comprometer a feitura da obra, toda ela dependente de introspecção, e de acurada pesquisa e trato metodológicos, como bem explicitaria em O Livro dos Médiuns, um ano depois, e que já trazia no bojo de suas experiências pedagógicas, como evidenciava em seu Plano Proposto para a melhoria da Educação Pública, em 1828.
Em retorno à sua cidade natal, surpreso de lá constatar o crescimento do Espiritismo, já ouvira de um Espírito, o comentário seguinte: Por que te espantas? Lyon é a cidade dos mártires. A fé ali ainda é viva! Ela dará apóstolos ao Espiritismo. Se Paris é a cabeça, Lyon é o coração!
Referia-se o Espírito comunicante às personagens do Cristianismo primitivo, sacrificados à época dos imperadores romanos Séptimo Severo e Caracala. Lyon, pela sua privilegiada posição geográfica, havia sido o centro político administrativo do mundo gaulês. Para ela, afluiam diversas estradas importantes, convertendo-se, por isso mesmo, em residência quase que obrigatória de numerosas personalidades representativas romanas.
Relata Emmanuel, no livro Ave Cristo, que para ali convergiram a arte e a ciência, o comércio e a indústria. Todavia, apesar do crescimento e da soberba vida intelectual, dolorosa carnificina de cristãos lá ocorreu em 202 d.C. .
Por vários dias perdurou a perseguição, com assassínios em massa. Abnegados seguidores de Jesus erigiram sua memória à posteridade, como os grandes símbolos da Bondade, da Fé, da Mansuetude, da Tolerância, da Humildade, da cooperação fraternal e da diligência que empregavam no aperfeiçoamento de si mesmos, sacrificados à sanha dos perseguidores implacáveis, ali aclimatados pela força da conquista. Experimentados pela dor, amavam-se os irmãos na fé, segundo os padrões do Senhor.
Em toda a parte, a organização evangélica orava para servir e dar, em vez de orar para ser servida e receber.
Prossegue Emmanuel, revelando que amavam-se reciprocamente, estendendo os raios de sua abnegação afetiva por todos os núcleos da luta humana, jamais traindo a vocação de ajudar sem recompensa, ainda mesmo diante dos mais renitentes algozes.
Recebendo instruções de dedicados servidores da Causa Cristã, seguidores do apóstolo João, a Ecclesia de Lyon primava pelas realizações intelectuais e pelas obras de assistência, eternizando as mais vivas tradições do Evangelho de Jesus de Nazaré.
Foi nesta cidade que nasceu o prof. Rivail, e lá realizou sua primeira prédica da Causa Espírita. Lá chegando, constatou que não mais existia a casa que lhe servira à infância, consumida em uma inundação, em 1840. Recebido a 19 de setembro de 1860, no Centro Espírita de Broteaux, é acolhido à porta pelo Sr. Dijou e esposa. Este é, na História, o primeiro encontro de dirigentes espíritas. À sua frente, consubstancia-se o grande feito que compete à Doutrina Espírita realizar, e é em sublime epístola, que o Espírito Erasto, dirigindo-se à comunidade lionesa, registra o encontro fraterno.
Em Lyon, portanto, é fomentada a primeira base de divulgação do Espiritismo pela oratória, que, daquele momento em diante, seguiria seus passos, inquebrantável e grandioso, através de seus discípulos Léon Denis, Gabriel Delanne, Camille Flammarion, incentivando outros corações, como um rastro luminoso e perpétuo, a prosseguir pelos séculos porvindouros.
Kardec retornará ainda à cidade dos mártires cristãos em 1861. Lá, aborda seu tema predileto, a Caridade. Em 1862, deixa Paris para a terceira e mais extensa viagem.
Em novembro do mesmo ano, registra, na Revista Espírita, as suas informações: “Durante uma viagem de seis semanas e um percurso de quase 4.600 km, estivemos em vinte cidades, e assistimos a mais de cinquenta reuniões. O resultado nos deu uma grande satisfação moral, sob o duplo aspecto das observações colhidas e da constatação dos imensos progressos do Espiritismo.”
Curioso notar a característica de observador das transformações pelas quais o Espiritismo atravessava, já em sua época. Diz Kardec: “É evidente a diminuição dos médiuns de efeitos físicos, à medida que se multiplicam os médiuns de comunicações inteligentes.
É que, como os Espíritos o afirmam, a fase da curiosidade passou e já vivemos um segundo período, o da filosofia.” E acrescenta, “o terceiro, que começará em pouco, será o de sua aplicação à reforma da Humanidade.”
Sábias palavras, de quem sabia, como profundo conhecedor da alma humana, do papel primaz de remodelador de consciências, que o Espiritismo traz nos conteúdos pedagógicos que formam o seu corpo de Doutrina.
Podemos entender, notadamente na questão 216 de O Livro dos Espíritos, o caráter evolutivo do Espírito que, perpassando pelas reencarnações sucessivas e nas fases de refazimento/aprendizado no mundo espiritual de onde se origina, que está em si mesmo o potencial de transformação para melhor. Observando as manifestações de grupos os mais diversos que hoje se dedicam à preservação do ecossistema do planeta como Greenpeace, WWF SOS Mata Atlântica, e tantos outros , e ainda as ONGs ligadas à assistência do ser humano desvalido e abandonado da atenção de governos indiferentes e estritamente voltados à luta pelo poder, vemos que cabe ao espírita, membro de outra minoria criativa, na expressão do historiador Arnold Toynbee, o cultivo, a preservação, a divulgação do fator moral, que sublima a vida, que a correlaciona com os ensinos do Mestre de Nazaré, que contextualiza a saga humana num só dístico: Fora da Caridade não há Salvação.
Caridade-Fraternidade, que combate a dicotomia do Ente/Ser, iluminando-lhe a fronte e os destinos; que o eleva à categoria de criatura divina, soerguendo-lhe dos erros e enganos em que, obstinadamente, teima em experienciar;
Caridade-Humanista, que o aproxima de outro coração e que equaciona problemas de relacionamento humano numa só expressão: respeito mútuo;
Caridade-Transformação, que solapa o egoísmo e o orgulho ingentes na alma humana, transmutando-a, desvestindo-a do mis-en-scène social no qual derrapa e cai, como num despenhadeiro de trevas e solidão;
Caridade-Solidariedade, que estende as mãos e a inteligência aos eleitos pela Lei, na divina fase de recomposição de experiências, e que, padecentes do sustento espiritual, locupletam-se no crime e nos desregramentos de toda sorte.
A sublime admoestação foi lançada. Caberá a nós, que nos dizemos espíritas, primar pela extensão do conceito CARIDADE, que, neste plano de trevas e enganos, brilha (refulge) qual holofote luminoso a conduzir os que tiverem Boa-Vontade.
Bibliografia:
Viagem Espírita em 1862 – Allan Kardec
Ave Cristo – Emmanuel/Francisco C.Xavier