Cenário, século IV depois de Cristo:
Agostinho de Hipona nascia em 354; Juliano, o imperador acusado de apostasia pela nascente igreja dita cristã findaria seus dias em 363, após lutar pelo direito natural dos cidadãos romanos de cultivarem a religião de sua própria escolha; os 42 mártires jovens da Capadócia, último reduto legitimamente cristão, pois herdara os princípios do Evangelho de Jesus dos tempos apostolares, são mortos sob tortura em 320; o Império Romano agonizante contava os dias para o seu desaparecimento definitivo em 410.
Em Alexandria, a filosofia de Plotino florescia nas escolas neo-platônicas.
Nos tempos antigos, Alexandria foi uma das cidades mais importantes do mundo. Foi fundada em torno de um pequeno “vilarejo” em 331 a.C. por Alexandre Magno, permanecendo como capital do Egito durante mil anos, até à sua conquista pelos muçulmanos (639-642) quando a capital passou a ser Futsat, posteriormente Cairo.
Alexandria era conhecida pelo seu Farol, considerada uma das sete maravilhas do mundo antigo, pela sua grande e importante Biblioteca (a maior do mundo antigo) e pelas catacumbas de Kom el Shogafa (uma das sete maravilhas do mundo medieval) .
A arqueologia marinha em Alexandria estava em curso no porto da cidade em 1994, e tem revelado detalhes de Alexandria antes da chegada de Alexandre, quando aí existia uma cidade chamada Rhakotis, no Período Ptolemaico.
Alexandria foi palco de diversas guerras de domínio romano, culminando com a sua destruição em 273, com parcial destruição de sua famosa Biblioteca, que havia sido preservada por Cléopatra. “Finalmente, em 297, a revolta do usurpador Domitius Domitianus acabou com Alexandria tomada e saqueada pelas tropas de Diocleciano, ao fim de um cerco de oito meses (vitória comemorada pelo chamado ‘Pilar de Pompeu’). Dizia-se que depois da capitulação da cidade, Diocleciano ordenou que o massacre continuasse até que o sangue chegasse aos joelhos do seu cavalo, livrando-se os alexandrinos da morte quando Diocleciano caiu do cavalo, ao resvalar num charco de sangue. Além disso, houve nessa época vários sismos violentos, tendo sido o de 21 de julho de 365 particularmente devastador. Segundo as fontes, houve 50 000 mortos em Alexandria, e o Instituto Europeu de Arqueologia Submarina, encontrou no fundo das águas do porto centenas de objetos e pedaços de colunas que demonstram que pelo menos cerca de vinte por cento da cidade dos Ptolomeus foi afundada, incluindo o Bruchion, suposto enclave da Biblioteca.” (fonte: wikipédia)
Cidade cosmopolita, abrigava gregos, africanos, egípcios, uma grande comunidade de judeus e outra de cristãos católicos, atribuindo-se a São Marcos a primazia de primeiro divulgador dos ensinos de Jesus, muito embora à época de Hipátia a intolerância religiosa tivesse substituído o primado da caridade, do perdão e do respeito à vida pregados por Jesus de Nazaré e seus apóstolos.
É nesse cenário que nasce, em 355, a menina Hypátia, filha de Théon, filósofo, astronomo, matemático, autor de diversos livros e professor na cidade.
Envolta em lendas, sua figura jaz no imaginário humano como “a jovem filósofa pagã, mestra em Filosofia, Geometria e Matemática, originária de Alexandria e que foi morta por cristãos fanáticos” – diz a biógrafa de Hypatia, Maria Dzielska, que esta é uma definição constante da maior parte dos documentos literários e históricos e que apresentam a filósofa como uma vítima inocente do cristianismo nascente, sendo o seu assassinato “um fato que assinala a proscrição do livre exame e simultaneamente dos deuses gregos.”(DZIELSKA, 2009)
Hypatia aparece pela primeira vez na literatura européia no século XVIII; na época do surgimento do Iluminismo, muitos fizeram dela instrumento de polêmica religiosa e filosófica, como Voltaire, que usou a história de Hypatia para dar voz à sua repugnância pela igreja e pela religião revelada. Voltaire escreve sobre São Cirilo e o clero de Alexandria (responsável pela morte de Hypatia), que a assassinaram por ela “acreditar nos deuses helênicos, nas leis da Natureza racional e nas capacidades que permitiriam ao espírito humano libertar-se de dogmas impostos. Como consequência, o fanatismo religioso levava ao martírio dos gênios e à redução do espírito à redução.” (DZIELSKA, 2009)
Porém, Voltaire usa de metáforas e gracejos – seu estilo – para exaltar a bela feminilidade de Hypatia em detrimento de seu saber e postura séria de mulher digna, reduzindo-a a ‘bela vítima do clero corrupto’.
Que os culpados por sua morte eram cristãos, não há dúvidas. Porém que tipo de cristãos? Cristãos do século IV, num momento onde as lutas religiosas pelo poder ocupavam as ruas da maior parte da região, fosse a própria Alexandria, que teve sua Biblioteca definitivamente destruída pelas forças de Cirilo, fosse pela queda iminente do já devastado Império Romano, e que trazia consigo a derrocada de toda uma civilização.
Este poderia ser o quadro favorável ao desenvolvimento de forças destruidoras que acabariam por anular a importância da Filosofia como fator educacional, nas Academias neoplatonicas, e das Ciências já em pleno vigor de seu desenvolvimento com os filósofos e matemáticos cujos trabalhos acabaram por se perder quase na totalidade pelo fanatismo ignorante da época.
Nada mais natural que Hypatia representasse o símbolo desse ocaso da civilização helênica, pois com ela morriam o conhecimento, a liberdade, a sabedoria. Sua morte escurece os céus de uma nascente Europa que continuaria a flagelar seus heróis e heroínas do Saber, da Virtude, da Razão.
Joanna D’Arc, Thomas More, à semelhança de Sêneca, morreram por seus ideais de uma civilização perfeita, onde a igualdade de oportunidades alcançasse a todos, principalmente os flagelados da miséria, da dor e das injustiças humanas.
Não seria ao acaso que o símbolo da Revolução Francesa, imortalizado no quadro de Delacroix, era uma mulher – pois somente ela pode unir transcendência e razão, num mundo ainda hoje patriarcal, e fragmentado por conceitos dúbios de sexualismo.
Citamos acima algumas almas femininas (pela sensibilidade apenas) inseridas em corpos de homens bravos pela iniciativa e coragem, como Juliano, dito apóstata pela mesma igreja que condena Hypatia, e que, embora sobrinho de um soberano soberbo em seus anseios políticos e que toma o poder de Roma com o estandarte do Cristo, dizemos Constantino, cerrou todas as possibilidades de recriação de um reino de Paz sonhado por Juliano, onde todos pudessem ter suas opções religiosas preservadas, já que cada Ser detem uma capacidade de intuição e apreensão da Verdade eterna.
Juliano, que se dizia a encarnação de Alexandre Magno (BENOIST-MECHIN, 2006), luta por preservar as tradições helênicas, pois nelas via a possibilidade de crescimento do Conhecimento e do entendimento racional da divindade: “Juliano foi derrotado pelas gerações que pretendia travar: elas derrubaram-no por terra apesar da sua força e passaram por cima do seu peito… (Chateubriand)”.
Henrik Ibsen imortalizaria na dramaturgia universal, a figura do divino “apóstata” na pela teatral “Imperador e Galileu”, encenada em São Paulo, no ano de 2008, tendo como ator principal Caco Ciocler.
Juliano e Hypatia nunca se encontraram em vida, porém, vitimados ambos pela apostasia da fé irracional, legaram à eternidade os seus feitos de profundo amor à vera Democracia, à liberdade religiosa, à liberdade de Pensamento, ao Saber, traçando, ao seu modo e conforme a sua época, os doces caminhos para a Sabedoria universal, que viria a corporificar-se no futuro, na pessoa de Allan Kardec e do Espiritismo.
Sonia Theodoro da Silva
Dzielska, Maria – Hipátia de Alexandria, Ed.Relógio D´Água Edit.,2009, Lisboa, Portugal
BENOIST-Méchin, Imperador Juliano-O Filho do Sol, 2006, Ed. Ésquilo, Lisboa, Portugal.
Filme: Ágora (“Alexandria”, no Brasil):
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Tributo à Hypatia de Alexandria:
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Peça Teatral de Ibsen Imperador e Galileu (trechos):
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